Eis o capítulo 3 (e o finalzinho do 2) do livro Technopoly, de Neil Postman, que traduzi para a Oficina de Escrita do Pedro Sette-Câmara há umas duas semanas.
Da Tecnocracia ao Tecnopólio
Neil Postman. Trad. Renata Broock. Rev. Pedro Sette-Câmara. Capítulo 3 de Technopoly. Nova York : Random House, 1992.
O mundo ocidental tornou-se uma tecnocracia da qual não havia como voltar atrás. Dirigindo-se tanto aos que estavam entusiasmados com a tecnocracia como aos que sentiam repulsa por ela, Stephen Vincent Benét deu o único conselho que fazia algum sentido. Em John Brown’s Body, escreveu:
Se por fim você precisa ter uma palavra a dizer,
Não diga, do jeito deles,
“É uma mágica mortal e amaldiçoada,”
Nem “É uma bênção”, mas apenas “Está aqui”.
Dizer apenas: “Está aqui”. Mas quando começou o “aqui”? Quando a ideologia de Bacon se tornou realidade? Quando, para usar a frase de Siegfried Giedion, a mecanização assumiu o comando? Sendo cautelosos, poderíamos localizar o surgimento da primeira verdadeira tecnocracia na Inglaterra na segunda metade do século XVIII – digamos, com a invenção da máquina a vapor por James Watt, em 1765. Daquele momento em diante, não se passou uma década sem a invenção de algumas máquinas significativas que, em conjunto, puseram fim à “manufatura” medieval (que outrora significava “fazer à mão”). A energia prática e as habilidades técnicas desencadeadas nesta época mudaram para sempre o ambiente material e psíquico do mundo ocidental.
Uma data igualmente plausível para o início da tecnocracia (e, para os americanos, mais fácil de lembrar) é 1776, quando Adam Smith publicou A Riqueza das Nações. Assim como Bacon não era cientista, Smith não era inventor. Mas, tal como Bacon, ele forneceu uma teoria que deu relevância conceitual e credibilidade à direção que a iniciativa humana tomava. Explicitamente, ele justificou a transformação do trabalho qualificado, personalizado e de pequena escala na produção mecanizada, impessoal e em grande escala. Ele não só argumentou de forma convincente que o dinheiro, e não a terra, era a chave para a riqueza, mas também nos deu o famoso princípio do mercado autorregulado. Numa tecnocracia – isto é, numa sociedade apenas vagamente controlada pelos costumes sociais e pela tradição religiosa, e orientada pelo impulso de inventar – uma “mão invisível” eliminará os incompetentes e recompensará aqueles que produzem bem e de forma barata os bens que as pessoas desejam. Não estava claro então, e ainda não está, qual mente invisível guia a mão invisível, mas é possível (acreditavam os industrialistas tecnocráticos) que Deus pudesse ter algo a ver com isso. E se não Deus, então a “natureza humana”, pois Adam Smith chamou a nossa espécie de “Homem Econômico”, nascido com o instinto de negociar e adquirir riqueza.
De qualquer forma, no final do século XVIII, a tecnocracia estava bem encaminhada, especialmente depois de Richard Arkwright, barbeiro de profissão, ter desenvolvido o sistema fabril. Em suas fiações de algodão, Arkwright treinou trabalhadores, na sua maioria crianças, “para se adaptarem à celeridade regular da máquina”, e ao fazê-lo deu enorme impulso ao crescimento de formas modernas de capitalismo tecnocrático. Em 1780, vinte fábricas estavam sob seu controle, pelas quais uma nação agradecida o nomeou cavaleiro e graças às quais um filho igualmente agradecido herdou uma fortuna. Arkwright pode ser considerado o primeiro, quiçá o arquetípico capitalista tecnocrata. Ele exemplificou em todos os detalhes o tipo de empreendedor do século XIX que estava por vir. Tal como Siegfried Giedion o descreveu, Arkwright criou a primeira mecanização da produção “[num] ambiente hostil, sem protetores, sem subsídios governamentais, mas nutrida por um utilitarismo implacável que não temia nenhum risco ou perigo financeiro”. No início do século XIX, tais empreendedores estavam aparecendo em todas as grandes cidades da Inglaterra. Em 1806, o conceito de tear mecânico, introduzido por Edmund Cartwright (um clérigo, por incrível que pareça), estava revolucionando a indústria têxtil ao eliminar, de uma vez por todas, trabalhadores qualificados, substituindo-os por aqueles que apenas mantinham as máquinas em funcionamento.
Em 1850, apareceu a indústria de máquinas-operatrizes: máquinas para fabricar máquinas. E a partir da década de 1860, especialmente na América, um fervor coletivo pela invenção tomou conta das massas. Para citar Giedion novamente: “Todos inventavam, quem possuía um empreendimento procurava maneiras e meios de fabricar seus produtos com mais rapidez, perfeição e, muitas vezes, com maior beleza. De forma anônima e discreta, as ferramentas antigas foram transformadas em instrumentos modernos.”1 Devido à sua familiaridade, não é necessário descrever em detalhes todas as invenções do século XIX, incluindo aquelas que deram substância à expressão “revolução das comunicações”: a fotografia e o telégrafo (década de 1830), a prensa rotativa (década de 1840) , a máquina de escrever (década de 1860), o cabo transatlântico (1866), o telefone (1876), o cinema e a telegrafia sem fio (1895). Alfred North Whitehead foi quem melhor resumiu isso quando observou que a maior invenção do século XIX foi a própria ideia de invenção. Tínhamos aprendido como inventar coisas, e a questão de por que inventamos coisas perdeu a importância. A ideia de que “se algo pode ser feito, deve ser feito” nasceu no século XIX. E junto com ela desenvolveu-se uma crença profunda em todos os princípios através dos quais a invenção acontece: objetividade, eficiência, especialização, padronização, medição e progresso. Também passou a acreditar-se que o motor do progresso tecnológico funcionava de forma mais eficiente quando as pessoas eram concebidas não como filhos de Deus ou mesmo como cidadãos, mas como consumidores – isto é, como mercados.
Nem todos concordaram, é claro, especialmente com a última ideia. Na Inglaterra, William Blake escreveu sobre os “sombrias usinas satânicas” que despojavam os homens de suas almas. Matthew Arnold advertiu que a “fé nas máquinas” era a maior ameaça à humanidade. Carlyle, Ruskin e William Morris protestaram contra a degradação espiritual trazida pelo progresso industrial. Na França, Balzac, Flaubert e Zola documentaram nos seus romances o vazio espiritual do “Homem Econômico” e a pobreza do impulso ganancioso.
O século XIX também viu o surgimento de comunidades “utópicas”, das quais talvez a mais famosa seja a comunidade experimental de Robert Owen na Escócia, chamada New Lanark. Lá, ele estabeleceu uma comunidade fabril modelo, proporcionando jornadas de trabalho reduzidas, melhores condições de vida e educação inovadora para os filhos dos trabalhadores. Em 1824, Owen veio para a América e fundou outra utopia em New Harmony, Indiana. Embora nenhuma das suas experiências, ou de outros, tenha durado muito, dezenas foram tentadas num esforço para reduzir os custos humanos de uma tecnocracia.2
Também não devemos deixar de mencionar a ascensão e queda do muito difamado Movimento Ludita. A origem do termo é obscura, alguns acreditam que se refere às ações de um jovem chamado Ludlum que, tendo recebido do pai a ordem de consertar uma máquina de tecer, em vez disso a destruiu. Em todo o caso, entre 1811 e 1816 surgiu um apoio generalizado aos trabalhadores que se ressentiam amargamente dos novos cortes salariais, do trabalho infantil e da eliminação de leis e costumes que outrora protegiam os trabalhadores qualificados. Seu descontentamento foi expresso por meio da destruição de máquinas, principalmente na indústria de vestuário e tecidos; desde então, o termo “ludita” passou a significar uma oposição quase infantil e certamente ingênua à tecnologia. Mas os luditas de antigamente não eram nem infantis nem ingênuos. Eram pessoas que tentavam desesperadamente preservar quaisquer direitos, privilégios, leis e costumes que lhes tivessem de uma visão de mundo mais antiga.3
Eles perderam. Assim como perderam todos aqueles que, no século XIX, quiseram dizer não. Copérnico, Kepler, Galileu e Newton poderiam muito bem estar do lado deles. Talvez Bacon também, pois não era sua intenção que a tecnologia fosse um flagelo, nem algo destruidor. Mas a maior deficiência de Bacon sempre foi o fato de não estar familiarizado com a lenda de Thamus; ele não entendia nada da dialética da mudança tecnológica, e pouco falava sobre as consequências negativas da tecnologia. Mesmo assim, de forma abrangente, a ascensão da tecnocracia provavelmente teria agradado Bacon, pois não há dúvida de que a tecnocracia transformou o aspecto da civilização material e contribuiu muito para aliviar o que Tocqueville chamou de “a doença do trabalho”. E embora seja verdade que o capitalismo tecnocrata criou favelas e alienação, também é verdade que tais condições foram percebidas como um mal que poderia e deveria ser erradicado; isto é, as tecnocracias criaram um maior respeito pela pessoa média, cujo potencial e mesmo conveniência se tornaram uma questão de forte interesse político e de urgentes políticas públicas sociais. O século XIX viu a extensão da educação pública, lançou as bases do sindicato moderno e levou à rápida difusão da alfabetização, especialmente na América, por meio do desenvolvimento de bibliotecas públicas e da crescente importância das revistas de variedades. Para tomar apenas um exemplo do último ponto, a lista dos contribuintes do século XIX para The Saturday Evening Post, revista fundada em 1821, incluía William Cullen Bryant, Harriet Beecher Stowe, James Fenimore Cooper, Ralph Waldo Emerson, Nathaniel Hawthorne e Edgar Allan Poe – em outras palavras, a maioria dos escritores atualmente estudados na escola na matéria de Literatura Americana. A cultura tecnocrática corroeu a linha que tornara os interesses intelectuais das pessoas instruídas inacessíveis à classe trabalhadora e, como observou George Steiner, podemos considerar que o período entre a Revolução Francesa e a Primeira Guerra Mundial marcou um oásis de qualidade em que a grande literatura alcançou as massas.
Outra coisa também atingiu o público de massa: a liberdade política e religiosa. Seria uma simplificação inadmissível afirmar que a Era do Iluminismo teve origem unicamente devido à importância emergente da tecnologia no século XVIII, mas é bastante claro que a grande ênfase colocada sobre a individualidade na esfera econômica teve uma ressonância irresistível na esfera política. Numa tecnocracia, a realeza herdada é ao mesmo tempo irrelevante e absurda. A nova realeza foi reservada a homens como Richard Arkwright, que era de origem humilde, mas de inteligência e ousadia elevadas. Não se podia negar o poder político àqueles que possuíam tais dons, e eles estavam preparados para tomá-lo caso este não lhes fosse concedido. De qualquer maneira, a natureza revolucionária dos novos meios de produção e comunicação teria naturalmente gerado ideias radicais em todos os domínios da iniciativa humana. A tecnocracia deu-nos a ideia de progresso e, necessariamente, afrouxou nossos laços com a tradição – seja política ou espiritual. A tecnocracia nos encheu com a promessa de novas liberdades e novas formas de organização social. A tecnocracia também acelerou o mundo. Podíamos chegar aos lugares mais rapidamente, fazer as coisas mais rapidamente, realizar mais em menos tempo. O tempo, então, tornou-se um adversário sobre o qual a tecnologia poderia triunfar. E isso significava que não havia tempo para olhar para trás ou contemplar o que estava sendo perdido. Havia impérios a construir, oportunidades a explorar, liberdades empolgantes a desfrutar, especialmente na América. Ali, nas asas da tecnocracia, os Estados Unidos atingiram níveis sem precedentes como potência mundial. Que Jefferson, Adams e Madison tivessem achado tal lugar desconfortável, talvez até desagradável, não importava. Também não importava que houvesse vozes americanas do século XIX – Thoreau, por exemplo – que se queixassem do que estava sendo abandonado. A primeira resposta às reclamações foi: não deixamos para trás nada além das amarras de uma cultura usuária de ferramentas. A segunda resposta foi mais cuidadosa: a tecnocracia não nos dominará. E isso era verdade, até certo ponto. A tecnocracia não destruiu por completo as tradições dos mundos social e simbólico. A tecnocracia subordinou estes mundos – sim, e até os humilhou – mas não os tornou totalmente sem efeito. Na América do século XIX ainda existiam homens santos e o conceito de pecado. Ainda existia orgulho regional, e era possível ajustar-se às noções tradicionais de vida familiar. Era possível respeitar a própria tradição e encontrar amparo no ritual e no mito. Era possível acreditar na responsabilidade social e na praticidade da ação individual. Era até possível acreditar no bom senso e na sabedoria dos mais velhos. Não era fácil, mas era possível.
A tecnocracia que emergiu, totalmente armada, na América do século XIX, desdenhou de tais crenças, porque os homens santos e o pecado, as avós e as famílias, as lealdades regionais e as tradições de dois mil anos antagonizam o modo de vida tecnocrata. São um resíduo problemático de um período de uso de ferramentas, uma fonte de críticas à tecnocracia. Representam um mundo de ideias que se afasta da tecnocracia e a repreende – repreende sua linguagem, sua impessoalidade, sua fragmentação, sua alienação. E assim a tecnocracia desdenha desse mundo de ideias; mas, na América, ela não o destruiu, nem poderia destruí-lo.
Podemos ter uma noção da interação entre a tecnocracia e os valores do Velho Mundo na obra de Mark Twain, que era fascinado pelas realizações técnicas do século XIX. Ele dizia que era “o mais simples e mais robusto e infinitamente maior e mais digno de todos os séculos que o mundo já viu”, e uma vez felicitou Walt Whitman por ter vivido na época que deu ao mundo os benefícios do alcatrão de carvão. Costuma-se afirmar que ele foi o primeiro escritor a usar regularmente uma máquina de escrever, e investiu (e perdeu) muito dinheiro em novas invenções. No livro A vida no Mississippi ele relata de modo afetuoso e detalhado o desenvolvimento industrial, como aqui descrevendo o crescimento das fábricas de algodão em Natchez:
A Fiação Rosalie, em Natchez, tem capacidade para 6.000 fusos e 160 teares e emprega 100 trabalhadores. A Companhia de Fiação de Algodão de Natchez iniciou suas operações há quatro anos num prédio de dois andares de 15 por 60 metros, com 4.000 fusos e 128 teares. […] A fábrica trabalha 5.000 fardos de algodão anualmente e fabrica tecido marrom para camisas e lençóis, e brocas do melhor padrão de qualidade, produzindo 4,5 milhões de metros desses produtos por ano.
Aquilo de que Twain mais gostava era descrever o gigantismo e a engenhosidade da indústria americana. Mas, ao mesmo tempo, a totalidade da sua obra é uma afirmação dos valores pré-industriais. A lealdade pessoal, a tradição regional, a continuidade da vida familiar, a relevância das histórias e da sabedoria dos idosos são a alma do seu trabalho. A história de Huckleberry Finn e Jim alcançando a liberdade numa jangada é nada menos que uma celebração da espiritualidade duradoura do homem pré-tecnológico.
Se perguntarmos, então, por que a tecnocracia não destruiu a visão de mundo de uma cultura de uso de ferramentas, poderemos responder que a fúria do industrialismo era demasiado nova e ainda demasiado limitada em seu âmbito para alterar as necessidades da vida interior ou para impulsionar eliminar a linguagem, as memórias e as estruturas sociais do passado de uso de ferramentas. Era possível contemplar as maravilhas de uma fábrica de algodão mecanizada sem acreditar que a tradição era totalmente inútil. Ao rever a história americana do século XIX, podemos ouvir os gemidos da religião em crise, das mitologias sob ataque, de uma política e de uma educação em confusão, mas esses gemidos ainda não são estertores de morte. São os sons de uma cultura que sofre, e nada mais. Afinal, as ideias das culturas usuárias de ferramentas foram concebidas para abordar questões que ainda persistiam numa tecnocracia. Os cidadãos de uma tecnocracia sabiam que a ciência e a tecnologia não forneciam filosofias segundo as quais viver, e agarraram-se às filosofias de seus pais. Não conseguiam convencer-se de que a religião, como Freud resumiu no início do século XX, não passa de uma neurose obsessiva. Nem podiam acreditar, como ensinava a nova cosmologia, que o universo é o resultado de posições acidentais de átomos. E continuaram a acreditar, como Mark Twain, que, apesar de toda a sua dependência de máquinas, as ferramentas ainda deveriam ser servos, e não senhores. Eles permitiriam que as ferramentas fossem servos presunçosos, agressivos, audaciosos e atrevidos, mas pensar que as ferramentas se elevariam acima de sua posição servil era terrível. E embora a tecnocracia não tenha encontrado um lugar claro para a alma humana, seus cidadãos mantiveram a crença de que nenhum aumento na riqueza material os compensaria por uma cultura que insultava seu amor-próprio.
E assim duas visões de mundo opostas – a tecnológica e a tradicional – coexistiram numa tensão desconfortável. A tecnológica era a mais forte, claro, mas a tradicional estava lá – ainda funcional, ainda exercendo influência, ainda viva demais para ser ignorada. Isto é o que encontramos documentado não apenas em Mark Twain, mas na poesia de Walt Whitman, nos discursos de Abraham Lincoln, na prosa de Thoreau, na filosofia de Emerson, nos romances de Hawthorne e Melville e, mais vividamente ainda, no monumental Democracia na América, de Alexis de Tocqueville. Numa palavra, dois mundos de ideias distintos esbarravam um no outro na América do século XIX.
Com a ascensão do Tecnopólio, um desses mundos de ideias desaparece. O Tecnopólio elimina as outras alternativas precisamente da maneira que Aldous Huxley descreveu em Admirável mundo novo. Ele não as torna ilegais. Não as torna imorais. Nem mesmo as torna impopulares. Torna-as invisíveis e, portanto, irrelevantes. E o faz redefinindo o que entendemos por religião, por arte, por família, por política, por história, por verdade, por privacidade, por inteligência, para que as nossas definições se ajustem às suas novas exigências. O tecnopólio, em outras palavras, é a tecnocracia totalitária.
Enquanto escrevo (na verdade, essa é a razão pela qual escrevo), os Estados Unidos são a única cultura que se tornou um Tecnopólio. É um Tecnopólio jovem, e podemos presumir que deseja não apenas ter sido o primeiro, mas continuar a ser o mais desenvolvido. Por isso, observa com cuidado o Japão e várias nações europeias que também se esforçam para se tornarem tecnopólios.
Dar uma data ao início do Tecnopólio na América é um exercício de arbitrariedade. É como tentar dizer com precisão quando uma moeda que você jogou no ar começa a cair. Não conseguimos ver o momento exato em que ela para de subir; sabemos apenas que isso aconteceu, e que passou a cair. O próprio Huxley identificou o surgimento do império de Henry Ford como o momento decisivo na mudança da tecnocracia para o Tecnopólio, razão pela qual no seu admirável mundo novo o tempo é reconhecido como a.F. (Antes de Ford) e d.F. (Depois de Ford).
Devido ao drama, sinto-me tentado a citar, como momento decisivo, o famoso “Julgamento do Macaco” de Scopes, realizado em Dayton, Tennessee, no verão de 1925. Ali, tal como no julgamento de Galileu por heresia, três séculos antes, duas visões de mundo opostas enfrentaram-se, cara a cara, em claro conflito. E, assim como no julgamento de Galileu, a disputa centrou-se não apenas no conteúdo da “verdade”, mas também no processo apropriado pelo qual a “verdade” deveria ser determinada. Os defensores de Scopes apresentaram (ou, mais precisamente, tentaram apresentar) todos os pressupostos e toda a engenhosidade metodológica da ciência moderna para demonstrar que a crença religiosa não pode desempenhar nenhum papel na descoberta e na compreensão das origens da vida. William Jennings Bryan e seus seguidores lutaram apaixonadamente para manter a validade de um sistema de crenças que colocava a questão das origens nas palavras de seu deus. No processo, fizeram papel de bobos aos olhos do mundo. Quase setenta anos depois, não é inapropriado dizer algo em seu nome: esses “fundamentalistas” não ignoravam nem eram indiferentes aos benefícios da ciência e da tecnologia. Tinham automóveis, eletricidade, e roupas feitas à máquina. Usavam telégrafo e rádio, e entre eles havia homens que poderiam ser chamados de cientistas respeitáveis. Estavam ansiosos para compartilhar a generosidade da tecnocracia americana, o que significa que não eram luditas nem primitivos. O que os incomodou foi o ataque da ciência à antiga história da qual brotou o seu sentido de ordem moral. Eles perderam, e perderam feio. Dizer, como disse Bryan, que ele estava mais interessado na Rocha das Eras que na idade das rochas foi inteligente e divertido, mas lamentavelmente inadequado. O embate resolveu a questão de uma vez por todas: ao definir a verdade, a grande narrativa da ciência indutiva tem precedência sobre a grande narrativa do Gênesis, e quem não concorda há de ficar nos cafundós intelectuais.
Embora valha muito a pena mencionar o julgamento de Scopes como uma expressão do repúdio final a uma visão de mundo mais antiga, sou obrigado a deixá-lo de lado. O julgamento teve mais a ver com ciência e fé do que com a tecnologia como fé. Para encontrar um evento que assinalou o início da teologia tecnológica, devemos olhar para um confronto anterior, e um pouco menos dramático. Sem deixar passar seu valor como trocadilho, escolho o que aconteceu no outono4 de 1910 como o sintoma crítico do início do Tecnopólio. De setembro a novembro daquele ano, a Comissão Interestadual de Comércio realizou audiências sobre a petição das ferrovias do Nordeste para um aumento nas taxas de frete para compensar os salários mais altos que os trabalhadores ferroviários haviam recebido no início do ano. A associação comercial, representada por Louis Brandeis, argumentou contra o pedido alegando que as ferrovias poderiam aumentar os seus lucros simplesmente operando de forma mais eficiente. Para embasar a seu argumento, Brandeis apresentou testemunhas – na sua maioria engenheiros e gestores industriais – que afirmavam que as ferrovias poderiam tanto aumentar salários quanto reduzir custos por meio da utilização de princípios de gestão científica. Embora Frederick W. Taylor não estivesse presente nas audiências, seu nome era frequentemente invocado como o criador da gestão científica, e os especialistas garantiram à comissão que o sistema desenvolvido por Taylor poderia resolver o problema de todos. A comissão finalmente decidiu contra a petição da ferrovia, principalmente por considerar que ela ganhava dinheiro suficiente do jeito que as coisas estavam, e não porque acreditasse na gestão científica. Mas muitas pessoas acreditavam, e as audiências projetaram Taylor e o seu sistema na cena nacional. Nos anos que se seguiram, foram feitas tentativas de aplicar os princípios do Sistema Taylor nas forças armadas, na profissão jurídica, no lar, na igreja e na educação. Eventualmente, o nome de Taylor e as especificidades do seu sistema desapareceram na obscuridade, mas suas ideias sobre do que é feita a cultura continuam a ser o alicerce do atual Tecnopólio Americano.
Utilizo este evento como um ponto de partida adequado porque o livro de Taylor, Princípios da Gestão Científica, publicado em 1911, contém o primeiro esboço explícito e formal dos pressupostos dos mundos de ideias do Tecnopólio. Este inclui as crenças de que o objetivo principal, se não o único, do trabalho e do pensamento humanos é a eficiência; que o cálculo técnico é, em todos os aspectos, superior ao julgamento humano; que, de fato, não se pode confiar no julgamento humano, porque este é afligido pela frouxidão, pela ambiguidade e pela complexidade desnecessária; que a subjetividade é um obstáculo ao pensamento claro; que o que não pode ser medido não existe, ou não tem valor; e que as questões dos cidadãos são melhor orientados e conduzidos por especialistas. Para ser justo com Taylor (que não inventou o termo “gestão científica” e que o utilizou com relutância), deve notar-se que o seu sistema foi originalmente concebido para ser aplicado apenas à produção industrial. A sua intenção era fazer do local de trabalho industrial uma ciência, o que não só aumentaria os lucros, mas também resultaria em salários mais elevados, menos horas de trabalho e melhores condições de trabalho para os operários. Em seu sistema, que incluía “estudos de tempo e movimento”, o julgamento individual dos trabalhadores foi substituído pelas leis, regras e princípios da “ciência” do seu trabalho. Isto significava, claro, que os trabalhadores teriam de abandonar quaisquer regras práticas tradicionais que estavam habituados a utilizar; na verdade, os trabalhadores eram dispensados de qualquer responsabilidade de pensar. O sistema pensaria por eles. Isso é crucial, porque levou à ideia de que qualquer tipo de técnica pode pensar por nós, o que está entre os princípios básicos do Tecnopólio.
Os pressupostos subjacentes aos princípios da gestão científica não surgiram de repente da originalidade da mente de Taylor. Foram incubados e nutridos nas tecnocracias dos séculos XVIII e XIX. E pode-se argumentar de forma justa que as origens do Tecnopólio se encontram no pensamento de Auguste Comte, famoso filósofo francês do século XIX, que fundou tanto o positivismo quanto a sociologia no esforço de construir uma ciência da sociedade. Os argumentos de Comte para a irrealidade de qualquer coisa que não pudesse ser vista e medida certamente lançaram as bases para a futura concepção de seres humanos como objetos. Mas, numa tecnocracia, tais ideias existem apenas como subprodutos do papel crescente da tecnologia. As tecnocracias estão preocupadas em inventar máquinas. O fato de as vidas das pessoas serem alteradas por máquinas é considerado natural, e o fato de as pessoas terem por vezes de ser tratadas como se fossem máquinas é considerado uma condição necessária e infeliz do desenvolvimento tecnológico. Porém, nas tecnocracias, tal condição não é considerada uma filosofia da cultura. A tecnocracia não tem como objetivo um grande reducionismo em que a vida humana deva encontrar o seu significado na maquinaria e na técnica. O tecnopólio sim. No trabalho de Frederick Taylor temos, creio eu, a primeira afirmação clara da ideia de que a sociedade é mais bem servida quando os seres humanos são colocados à disposição das suas técnicas e tecnologia, que os seres humanos valem, num certo sentido, menos do que suas máquinas. Ele e seus seguidores descreveram exatamente o que isto significa, e saudaram a sua descoberta como o início de um admirável mundo novo.
Por que o Tecnopólio – a submissão de todas as formas de vida cultural à soberania da técnica e da tecnologia – encontrou terreno fértil em solo americano? Existem quatro razões correlacionadas para a ascensão do Tecnopólio na América, por que ele surgiu primeiro na América e por que lhe foi permitido florescer. Acontece que tudo isso foi escrito extensivamente em muitos contextos bem conhecidos. O primeiro diz respeito ao que se costuma chamar de caráter americano, cujo aspecto relevante Tocqueville descreveu no início do século XIX. “O americano vive numa terra de prodígios”, escreveu ele; “tudo ao seu redor está em constante movimento, e cada movimento parece um avanço. Por consequência, em sua mente, a ideia de novidade está intimamente ligada à de melhoria. Em lugar nenhum ele vê qualquer limite posto pela natureza ao esforço humano; a seus olhos, algo que não existe é apenas algo que não foi tentado.”5
Esta característica do ethos americano é evidente para todos os que estudaram a cultura americana, embora existam grandes variações na sua explicação. Alguns o atribuem à natureza imigrante da população; alguns ao espírito de fronteira; alguns, aos abundantes recursos naturais de uma terra singularmente abençoada e às oportunidades ilimitadas de um novo continente; alguns à liberdade política e religiosa sem precedentes proporcionada à pessoa média; alguns a todos esses fatores e a muitos mais. Basta dizer aqui que a desconfiança americana quanto a restrições – poder-se-ia mesmo dizer o ceticismo americano em relação à própria cultura – incentivou intrusões tecnológicas radicais e impensadas.
Em segundo lugar, e inextricavelmente relacionado com o primeiro, está o gênio e a audácia dos capitalistas americanos do final do século XIX e início do século XX, homens que foram mais rápidos e mais concentrados do que os de outras nações na exploração das possibilidades econômicas das novas tecnologias. Entre eles estão Samuel Morse, Alexander Graham Bell, Thomas Edison, John D. Rockefeller, John Jacob Astor, Henry Ford, Andrew Carnegie e muitos outros, alguns dos quais eram conhecidos como Barões Ladrões. O que eles estavam roubando – é mais claro agora do que era então – era o passado da América, pois sua ideia essencial era que nada vale tanto a pena preservar que pudesse impedir a inovação tecnológica. Estes foram os homens que criaram o século XX e alcançaram riqueza, prestígio e poder que teriam surpreendido até mesmo Richard Arkwright. Seu maior feito foi convencer seus compatriotas de que o futuro não precisa ter nenhuma ligação com o passado.
Terceiro, o sucesso da tecnologia do século XX em proporcionar aos americanos conveniência, conforto, rapidez, higiene e abundância era tão óbvio e promissor que parecia não haver razão para procurar quaisquer outras fontes de realização, criatividade ou propósito. Para cada crença, hábito ou tradição do Velho Mundo, existia e ainda existe uma alternativa tecnológica. Para a oração, a alternativa é a penicilina; para as raízes familiares, a alternativa é a mobilidade; para a leitura, a alternativa é a televisão; para a repressão, a alternativa é a gratificação imediata; para o pecado, a alternativa é a psicoterapia; para a ideologia política, a alternativa é o apelo popular estabelecido através de pesquisas de opinião científicas. Existe até uma alternativa ao doloroso enigma da morte, como Freud o chamou. O enigma pode ser adiado por uma vida mais longa, e talvez totalmente resolvido pela criogenia. Pelo menos, ninguém consegue pensar facilmente numa razão para não fazer isso.
À medida que os triunfos espetaculares da tecnologia aumentavam, algo mais estava acontecendo: antigas fontes de crença eram ameaçadas. Nietzsche anunciou que Deus estava morto. Darwin não foi tão longe, mas deixou claro que, se éramos filhos de Deus, chegamos a sê-lo por de um caminho muito mais longo e menos digno do que havíamos imaginado, e que no processo havíamos adquirido alguns parentes estranhos e indecentes. Marx argumentou que a história tinha suas próprias intenções, e estava nos levando aonde precisava, independentemente dos nossos desejos. Freud ensinou que não tínhamos compreensão das nossas necessidades mais profundas e não podíamos confiar nas nossas formas tradicionais de raciocínio para descobri-las. John Watson, o fundador do behaviorismo, mostrou que o livre arbítrio era uma ilusão, e que o nosso comportamento, no final das contas, não era diferente do de pombos. E Einstein e seus colegas nos disseram que não havia meios absolutos de julgar nada, que tudo era relativo. O impulso de um século de estudos teve o efeito de nos fazer perder a confiança nos nossos sistemas de crenças e, portanto, em nós mesmos. Em meio aos escombros conceituais, restava uma coisa segura em que acreditar: a tecnologia. Não importando o que mais possa ser negado ou abalado, é claro que os aviões voam, os antibióticos curam, os rádios falam e, como sabemos agora, os computadores calculam e nunca cometem erros – apenas os humanos defeituosos é que os cometem (que é o que Frederick Taylor estava tentando nos dizer esse tempo todo).
Por essas razões bem conhecidas, os americanos estavam mais bem preparados do que qualquer outro povo para empreender a criação de um Tecnopólio. Mas o seu pleno florescimento dependia ainda de outro conjunto de condições, menos visíveis e, portanto, menos conhecidas. Estas condições forneceram o pano de fundo, o contexto da desconfiança americana em restrições, o gênio explorador dos seus capitães da indústria, os sucessos da tecnologia, e a desvalorização das crenças tradicionais assumiram o significado exagerado que empurrou a tecnocracia na América para o Tecnopólio. Esse contexto é explorado no capítulo seguinte, que chamo de “O Mundo Improvável”.
Giedion, p. 40.
O melhor relato da história das utopias pode ser encontrado em Segal.
Ver “Luddism Reconsidered”, de David Linton, em Etcetera, primavera de 1985, pp. 32-36.
No outono: fall, que também tem o sentido de «queda», como a queda de Adão e Eva. (PSC)
Tocqueville, p. 404.
Obrigado pelo texto, Renata. De fato, o questionamento das crenças «tradicionais» e a ascensão da tecnologia foram um produto de uma era de profunda transformação em várias esferas da vida humana — e um olhar mais amplo sobre esse período nos ajuda a compreender as forças que moldaram o mundo moderno.
Um abraço.
M.G.